sábado, 30 de janeiro de 2010

TEMPO

Agora a pouco comecei assisir a um daqueles filmes que vimos num fim de semana. Naquele tempo em que era rotina irmos à locadora em busca de belas tramas que jamais havíamos visto. Deitados no sofá ou na cama, assistíamos de Almodóvar a David Lynch, com ou sem pausas para desejos mais urgentes e antes ou depois de nossa viagem particular.

Após sua partida, eu fui sozinha, diversas vezes, à locadora escolher boas histórias em fins-de-semanas ou em noites entediantes de sexta- feira. Tentava provar a mim que tal programa rotineiro poderia ser tão apaziguador na solidão como era ao seu lado. E que ele, por si só, poderia ser uma ótima companhia. Quem sabe me tornaria uma viciada em cinema capaz de ter experimentado os mais raros prazeres da sétima arte.

Não deu certo. Tornou-se inevitável e descabido deixar o ambiente escuro apenas para mim. Além de tudo perceber que o que menos queria era estar sozinha. As tentativas não funcionaram porque pareceu doentio depois de alugar o filme que eu jamais vira porque você já o havia feito, fumar sozinha nosso cigarro e, antes da metade da história, esquece-la para saciar sua ausência carnal como se você estivesse ali.

Apesar de sentir sua ausência presente em tantas fases de meu dia, nunca me deixei crer nela. Fazia-me acreditar que tudo ficaria bem, que nada seria trágico. Do futuro, eu estava certa. Mas meu presente era um tanto melancólico e saudoso, e eu o negava. Fingia lidar bem com a solidão que eu ficara.

Neguei a saudade sua por muito tempo para parecer mais forte. Isso teve suas desvantagens, mas surtiu seus efeitos.

Hoje sou o resultado de todas as tentativas de manter-me bem e não choro quando você não está. Não sem um sorriso e certa calma. Pois eu já sei como é. E, sem remoldar minhas novas horas àquelas nossas, tenho meu próprio tempo. A rotina fica mais fácil quando não se finge. Quando não tenta-se burlar, esconder, esquecer, substituir, negar, enfim, essas coisas que se faz quando nada-se contra a corrente do destino.

Por muito tempo talvez eu tenha tido inveja de você. Me convencera que eu havia assumido o fardo mais pesado da sua partida por ter ficado com o que sobrou, com o que foi deixado para trás. Isso enquanto você ganhara lugares dos quais eu não faria parte, onde eu não passaria de uma exceção.

Atualmente - e não faz tanto tempo assim - estou satisfeita, consolidada, eu diria. Tenho meus planos, minha vida, minhas vontades e penso sempre em você... Estamos juntos como podemos e isso basta. Eu me adaptei. Esperava que mais cedo ou mais tarde isso acontecesse. E aconteceu quando eu parei de ter pressa e de me preocupar se te perdia ou não.

Agora eu escrevo como quem fala na cama, antes de dormir, com alguém que não está mais - e nunca mais estará. Mas eu escrevo, não falo e você sempre estará. E essas palavras não serão jogadas ao vento como as lamúrias de outros tempos. Não espero nada, pois pouco importa o que ainda não veio. Interessa que eu viva todos os sentimentos existentes nesse exato momento. As coisas se simplicam quando reduzimos a marcha e encontramos o ritmo dos acontececimentos.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

"Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele. Anoitecia e eu tornava a ler os fraseados que sabia de cor, depois repetia em voz alta o nome do tal sujeito, e balançava as pernas e ria à beça no sofá, eu me sentia tendo um caso com mulher alheia. E se me envaidecem os fraseados, bem maior era a vaidade de ser um criador discreto. Não se tratava de orgulho ou soberba, sentimentos natualmente silenciosos, mas de vaidade mesmo, com desejo de jactância e exibicionismo, o que muito valorizava minha descrição". (Chico Buarque, Budapeste, 17, 18)

Essa é uma das melhores passagens do livro do Chico. Ao menos foram frases que me pareceram tão intensas na descrição de um sentimento raro que me fizeram voltar à página delas várias vezes.
Imagino que, diferente da maior parte do livro - como é natural -, esse trecho saiu assim, bruto, naquelas doses extremas de entrega à obra.
Nesse momento entende-se Costa (o narrador) e ele passa a parecer menos rude.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

AFAGA-ME.

"Nos demais – eu sei,
qualquer um o sabe –
O coração tem domicílio
no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração – em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras
em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada
torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável
não para o verso
de veras".

"Encho-me dum leite de versos e,
sem poder transbordar,
encho-me mais e mais."


[Maiakóvski]

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Melhor ser culpado que um vil inocente.

É corajoso ter culpa sobre a vida. Saber que minhas ações, pensadas ou não, moveram acontecimentos.

Melhor assim, acumular culpas. Pois ser vítima é passividade, embora isso seja muitas vezes inevitável.

Porque eu errei, eu causei, eu quis. Ou porque eu evitei, eu não resisti, não me importei, esqueci.

Todos somos culpados na vida e muitos nos arrependemos. Porém a culpa é única, indivizível. Arrependimento não vale a pena.

Entretanto, assumir culpas é me assumir. Isso facilita o processo do autoconhecimento. É não apenas aceitar, mas entregar-me a mim mesma. É ser irremediavelmente culpada de o que sou.

Mais do que feita de erros e acertos, sou radicalmente culpada de minhas buscas. Eu me culpo por elas e me culpo por ser culpada.

Culpa, neste caso, não é um fardo. Ela torna-se um peso nas costas quando é repelida, no entanto não há como nos afastarmos dela. Quando se é culpada de algo, o é para sempre. O destino, o passo seguinte e, por consequência, todos os próximos rumos, são atingidos por isso.

Quando enxergamos o livre-arbítrio sobre as atitudes, tudo é facilitado. Os riscos tornam-se claros, assim como as consequências. Torna-se lúcido o caminho.

Sempre vai surgir uma culpa ou outra que não seja esperada. Algo para o qual não me sinta preparada. Esses são os momentos de prova nos quais deve-se ter apenas a certeza de que, em algum momento, o que quer que seja será superado e agregado à vida. Sempre haverá um lugar; tudo se acomoda.

Eu sou a favor das culpas. Sou eternamente responsável pelas minhas culpas verdes, azuis, vermelhas... essas que transparecem a vida.

A inocência, meu caro, é leitosa demais .

"(...) não perdi a ingenuidade.
É um vício necessário. Talvez o que faço melhor. Fico pronto para me despedaçar.

Não estou sozinho. Recebo companhia a cada minuto na nau dos insensatos.
No amor, em algum momento, você terá que ser ingênuo e acreditar. Terá que largar uma vida, refazer sua vida. Terá que abandonar a filosofia pessimista, a inteligência solteira do botequim e se declarar apaixonado. Terá que ser incoerente, contradizer fundamentos inegociáveis. Terá que rasgar a certidão negativa, a proteção bancária, os manifestos de aversão ao casamento e filhos.
Não dá para ser esperto sempre. Não dá para ser experiente sempre. Don Juan e Casanova também se quebraram. Napoleão e César também foram derrotados na intimidade. A ingenuidade é um poder terapêutico. Nada pode ser mais traumático e mais libertador dos costumes. É um instante definitivo e raro no relacionamento. Quando confiamos que será diferente, que somos eleitos por uma constelação de símbolos e casualidades, quando desistimos das armas e das reservas para se apresentar absolutamente disponível e vulnerável. Não há mentiras e formalidades, frases espirituosas e comentários sarcásticos. Há apenas uma burrice infindável, o beiço e a intenção de se entregar para uma mulher seja como for.
Pena que a ingenuidade tem que acabar mal. Caso contrário, não era ingenuidade, era sabedoria".
Os escritores mais amados são aqueles que falam pela gente.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Apenas pela beleza poética:

"'Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!' E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A via láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: 'Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?'

E eu vos direi: 'Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas'".

[Olavo Bilac]

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

NÃO SOU DAQUI

Meus avós são filhos do velho mundo que apostou na nova terra. Alguns trouxeram no sangue o peso da cor ou o fardo da religião de um povo. Deles, alguns cravaram raízes no Norte, outros no Nordeste ou no litoral carioca.

Meu pai nasceu e cresceu em Niterói, município separado da cidade maravilhosa por uma ponte sobre a Guanabara. No Rio, conheceria minha mãe, uma jovem com sobrenome tão indígena quanto como a baía é chamada. É que seu avô havia agregado aos registros da família o nome de uma índia por quem se apaixonou durante a construção da Transamazônica.

Minha mãe não nasceu na capital fuminense. Foi no Pará. Mas aí ela só veio ao mundo. Seus pais já moravam no interior de São Paulo e foi lá onde ela cresceu. Aos 17 resolveu estudar no Rio de Janeiro e morar com sua avó, moradora de uma das ruas que dão em Copacabana.

Quando ela conheceu meu pai não imaginava que largaria a vida de moça carioca para viver casada no interior do Ceará. Não imaginou, mas viveu, penou e amadureceu no "fim do mundo", como costuma chamar a cidade. Mas foi nesse lugar que ninguém ouviu falar que, depois de sete anos de casamento, eu cheguei.

A cidade, a casa e minha vida no que imagino ser sertão estão numa lembrança construída somente por histórias ouvidas, fotos e o que acho ser uma memória de meu primeiro ano de vida.

O poço do quintal, a piscininha de plástico debaixo da árvore no dia em que me gripei, as redes coloridas onde me ninavam, os brinquedinhos colocados na porta de entrada da casa quando eu brincava, a tangerina que devorava com caretas sentada no chão da varanda, as pererecas que se instalavam nas cortinas de meu quarto e eram exterminadas com água de bateria, o melão confundido por mim com uma bola... Isso foi lá no calor onde eu nasci.

Antes de meu segundo aniversário já estava no noroeste de Minas. Na cidade, onde de um lado há serra e do outro um rio, eu basicamente me fiz. Com o sotaque mineiro aprendi a falar e assim tive meus encontros amistosos com as crianças da rua de baixo durante aventuras solitárias de bicicleta pelo quarteirão.

Nessa cidade, também me machuquei com estripulias de patins ou nos riscos de me decidir apaixonada pelo colega da escola. Conforme aprendia e desaprendia de tudo, entendia de minhas ambições.


Quando a cidade ficou pequena demais eu sabia o que queria ser, pois já tinha crescido. Esperava crescer mais e conhecer mais do que havia amado em sonho.

Aos 16 mudei pra Brasília. A capital, apesar de estar num quadradinho de cerrado dentro do estado do Goiás, era a "cidade grande" mais próxima onde eu poderia estar. Ter a menor distância possível é importante quando os pais deixam sua filha adolescente morar sozinha para cursar faculdade.


Os horizontes nunca foram curtos. Um ano depois pude morar no Canadá, numa cidade onde a saída para o mar dava no Oceano Pacífico. O contato com os mais remotos estrangeiros tornou as distâncias mais táteis que nunca. Entendi que o mundo não é lá tão inalcançável quanto rezam as imaginações comumente limitadas. Foi aí que eu, que sempre tive que responder "não sou daqui" quando indagada sobre minha origem, me identifiquei com as viagens e aprendi a desejar ainda mais o mundo.

Em meio a algumas experiências "longe de casa", continuei e continuo tentando saber o que é viver nessa cidade planejada e super-moderna que está para virar cinquentenária. Aprendo junto de pessoas que começam a gerar a terceira geração de brasilienses e junto de tantos outros candangos.

Brasília é a única cidade (que tive notícia) que dá nome para aqueles que vivem mas não nasceram nela. Candango é isso e, por enquanto, é o que sou.

Mas, como não sou daqui, é provável que um dia me torne mais uma migrante na grande metrópole. Pretendo andar por aí e me fixar outras vezes, trocar de endereços... Enfim, não ser de outros lugares mais.

O crepúsculo é uma espiração.
Alívio.

A aurora é uma inspiração.
Esperança.


Não respondo se prefiro quando anoitece ou quando amanhece. Cada um tem sua beleza misteriosa e encantadora. Ambos acontecem.

JAMAIS

Eu jamais poderia ser a mesma. Não depois daquele livro, da embriaguez, e depois de tanta saudade. Não conseguiria ser a mesma mais. Mesmo com tantas leituras anteriores, ausências de sentidos e contínuo convívio com a falta. Nunca voltaria a ser o que era antes do beijo, da dor, do sucesso. Aquela de tempos atrás nunca mais serei eu, pois é impossível sair ilesa da jogadas do que chamam de destino. Abandonos, medos, descobertas. Aparecer sem remendos após tantas lutas, encontros, desencontros, perdas, maravilhas, não há como.
Velhas partes se desintegram no tempo, outras nos acontecimentos. E a nova pele sempre se cria nos sonhos e nas realizações. Há o que não mude, mas não há o que não se movimente. Por isso, depois de tudo o que vivi, passei e sonhei, ou durante esse presente, jamais poderia ser a mesma. Jamais serei.
Je ne regrette rien.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

INCONCRETO ABSOLUTO

Se houve alguma coisa de diferente nessa última passagem de ano, foi a minha completa desnecessidade de me planejar para os próximos meses. É como se eu tivesse me desligado do futuro e entendido, de nenhuma forma concreta, que o melhor a fazer é se entregar ao presente. A continuação não é feita a cada mês ou ano, mas num dia após o outro.
Acho que também entendi, ainda sem nenhuma concretização, que o tal algo de ausente que me atormenta não passa de algum canto mal interpretado de minha inconsciencia. E que, mesmo jurando o contrário, o importante é tentar me preocupar menos.
Além de qualquer suposição, descobri que os acontecimentos são inconcretos e é impossível definir, moldar, acabar. Chegar a uma verdader absoluta.
Necessária é a libertação, sempre. Meus momentos mais felizes foram os mais simples e tomados de liberdade. Isso é o desprendimento, a abstração dos sentimentos.
Então, se há uma nova luz em minha frente, ela conduz a além do resgate da paz... a ir mais longe.