quinta-feira, 18 de novembro de 2010

RECORTES PASSADOS

"Não é isso, Túlio. Afastada de mim
A intenção de te causar tormento.
É o Tempo, amigo. E se me faço ampla
O inimigo atroz não me acompanha
Porque Túlio se faz, a cada dia, exíguo.
Deleitosa, caminho até a montanha
E tu te fechas, tíbio, pesadas anteportas
Emergem do passeio a que me obrigo.
Não é tormento, Túlio. Sempre te enganas.
É essa fome de ti, esse amor infinito
Palavra que se faz lava na garganta."


"Túlio, não me pertenço mais.
Nem as palavras agora me pertencem.
Antes, são tuas, alma e a palavra
E dura dentro de ti vou me fazendo
Medo e muralha,
E se quiseres posso ser convento
E calar o meu verso, alimentar meu tempo
De corredores vazios e rosários.
Túlio, só de te ouvir o nome, desfaleço.
E a alma que sabia a entendimento,
De si mesma não sabe, nem do gozo
De te amar, que conhecia.
E se a ti, Túlio, te pertenço, ai, nunca mais
Do amor vou conhecer minha alegria.
Hei de fazer-me triste à imagem tua:
Hei de ser pedra e areia, soberba e solidão
Montanha crua."


"E circulando lenta, a idéia, Túlio,
Foi se fazendo matéria no meu sangue.
A obsessão do tempo, o sedimento
Palpável, teu rosto sobre a idéia

Foi nascendo

E te sonhei na imensidão da noite
Como os irmãos no sonho se imaginam.
Jungidos, permanentes, necessários
E amantes, se assim se faz preciso.

Tocar em ti. Recriar castidade
Não me sabendo casta, ser voragem
Ser tua, e conhecendo

Ser extensão do mar na tua viagem."


"A idéia, Túlio, vai se fazendo rubra
À medida que vou te refazendo."


"A idéia, Túlio,
É na verdade tudo o que me resta."


"Soergo meu passado e meu futuro
E digo á boca do Tempo que os devore.
E degustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto, Túlio, faz-se um Tempo

Imperecível, justo
Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para frente:
Indescritível, recortada, fixa."


"E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência"


"Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta

Quando tu, Dionísio, não estás."


"Embriaguez da vontade, Túlio
Sangue buscando a veia
É o que me faz perpétua.
Estrela sobre a testa
E de poesia plena
Vou te buscando imensa.

Embriagues de vontade, Túlio,
E os oponentes:
Tua pouca ciência, desafeto,
Exata em mim, minha maturidade.

E haverá louvor e recompensa
Para o amor incansável do poeta.
Dentro da sua soberba
Brioso de eternidade

Túlio, de pedra."


"Ama-me. Desvaneço e suplico. Aos amantes é lícito
Vertigens e pedidos. E é tão grande a minha fome
Tão intenso o meu canto, tão flamante meu precalo tecido
Que o mundo inteiro, amor, há de cantar comigo"


"Entendimento fatal
Demasia do gosto
Devo morrer agora

Se não me tomas.

Coração-corpo
Tão dilatado
Pulsando espesso

Se não me tomas
Vai-se o compasso
Do meu bater."


"Ao invés de vida
Te mando o gosto
Do meu morrer."


"Túlio viaja. A sós. E o tempo passa.
Túlio nos ares, asa, e amplidão,
E o poeta morrendo, a sós, na casa,
O coração nos ares".


[Hilda Hilst, Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão]

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